
“Dom Agnelo, o cardeal que chutou o trono e vendeu a carta do Papa”
Se tem uma coisa que a Igreja Habbletiana sabe fazer bem, é cerimônia. Rito ensaiado, canto gregoriano, aquele cheiro de incenso que gruda na roupa por dias e discursos cheios de palavras bonitas que no fim das contas ninguém lembra depois. Pois bem, tudo indicava que a posse de Dom Agnelo Rossi como arcebispo de São Paulo ia ser mais uma dessas. Mas aí ele abriu a boca.
A cena foi no Santuário Mãe de Deus, a igreja mais antiga da Arquidiocese, cheia até o último azulejo. Fieis, padres, bispos, cardeais, jornalistas, gente da periferia e até quem só apareceu porque ouviu dizer que ia ser diferente. E foi mesmo. Diferente de tudo. Era gente por tudo quanto é lado: no chão, nas grades, na praça, no telhado da padaria da frente. Tinha velhinha com véu e universitário com boné do MST. A cidade, por um instante, pareceu inteira ali. E não era por causa de pompa, não. Era por causa dele. O povo foi pra ver se era verdade mesmo que aquele padre que falava grosso com cardeal e manso com morador de rua tinha voltado. E era. Dom Agnelo chegou com um passo firme e olhar sereno.
Dom Rossi, com a cara de sempre — meio serena, meio teimosa — começou a posse chutando o balde do luxo. Disse, sem rodeios, que não ia usar o patrimônio [Catedral Metropolitana] da Arquidiocese, que não precisava de palácio nem de privilégios. “Ostentação desnecessária”, esbravejou, como se estivesse só comentando o clima. Teve quem chorou de emoção e teve quem quase engasgou com a hóstia.
O silêncio que veio depois durou três segundos. No quarto, os fiéis explodiram em palmas, enquanto os bispos presentes trocavam olhares como quem pensa: “mas já começou?” Um deles, mais corajoso, sussurrou entre os dentes: “Vai acabar fazendo da Igreja um sindicato de pobres” Mas falava baixo, porque no meio daquele povaréu todo, quem ia ter coragem de reclamar alto?
E a noite seguiu nesse clima de terremoto santo.
Durante a oração eucarística, Dom Rossi fez questão de lembrar os mártires da Teologia da Libertação e os leigos que deram a vida pelo povo — gente que normalmente não aparece nos altares oficiais. A cada nome citado, uma vela era acesa. Quando terminou, o altar parecia um campo de estrelas, mas os bispos olhavam como se estivessem vendo um incêndio.
E então veio o momento que ninguém esperava.
O Bispo Marini, pomposo, ajeitou os óculos e leu a carta do Papa Urbano, aquela oficializando Rossi como arcebispo. Papel chique, selo dourado, timbre de Roma — coisa fina. Mal ele terminou de ler, Dom Agnelo pegou o microfone, chamou o reitor do santuário e soltou, assim, na lata:
“Venda essa carta e entregue o dinheiro aos pobres. Isso deve valer de alguma coisa.”
Silêncio mortal.
O povo demorou uns cinco segundos pra entender o que tinha acabado de acontecer. Mas quando entendeu… meu amigo, o santuário veio abaixo. Aplauso, grito, viva, um senhor na frente levantou as mãos pro alto como se tivesse acabado de ver um milagre. Do lado dos bispos, só paralisia. O reitor, Pe. Gregório Magnus, segurava a carta como quem segura um pacote suspeito na alfândega. “O que eu faço agora?”, parecia perguntar com os olhos.
O que Dom Rossi fez foi simples: pegou a cruz de madeira que os padres da Arquidiocese lhe deram de presente e a segurou firme. Nada de ouro, nada de pedras preciosas. Madeira pura, crua, como deve ser.
“Esta cruz não é adorno. É promessa. E peso.”
E com isso, desceu do altar no meio do povo, sem esperar cerimônia, sem fazer pose. Parecia que estava ali desde sempre.
Lá fora, todo mundo tinha algo a dizer.
Dona Tereza, 65 anos, veterana da pastoral da moradia, estava eufórica: “Esse homem é um novo Dom Paulo Evaristo! Se deixar, ele mete essa carta do Papa num leilão e compra comida pra cidade inteira!”
Já Dom Gabriel Bragança, bispo recém-transferido de Roma, não estava nada feliz: “Isso não é Igreja. Isso é espetáculo barato. A Igreja precisa de ordem, e não de um cardeal querendo ser Che Guevara.”
Nos bastidores, a Cúria Romana, que já não era muito fã de Rossi, deve estar arrancando os cabelos. Ele foi mandado pra São Paulo exatamente pra sair do caminho, porque em Roma falava demais, incomodava demais, defendia gente demais. O plano era deixá-lo longe, domesticado, dentro dos conformes. Só que ninguém avisou o povo disso. E o povo já escolheu: esse cardeal é deles.
Agora a pergunta que não quer calar: o que vai ser da Arquidiocese de São Paulo com Dom Rossi no comando? Se depender dele, não vai ter trono, não vai ter pompa e não vai ter tempo pra quem acha que Igreja é só missa de domingo e discurso bonito.
Se depender do Vaticano, talvez venham cartas novas, puxões de orelha e tentativas de domesticar esse homem que, por alguma razão, se recusa a caber dentro do palácio que lhe deram.

São Paulo pode ter acabado de ganhar um arcebispo.
Ou um profeta.
Ou os dois.